17.2.08

Chegar atrasado aos números

A lei do aborto não existe só para resolver o problema de saúde do aborto clandestino, existe para defender a autonomia sexual das mulheres portuguesas, para defender a sua capacidade de construir projectos de vida, para apoiar com recursos públicos a sua escolha independente e informada.

No entanto, concordo com alguns que dizem que a persistência, a verificar-se, do aborto clandestino em números elevados nos deveria fazer pensar sobre a eficácia da lei e da forma como foi posta em prática. Não só pelos riscos para a saúde que o aborto clandestino implica, mas principalmente pela solidão, pela profunda humilhação pessoal e sexual que o aborto clandestino significa. Porque a sua persistência em números elevados implicaria que continuávamos a não defender a autonomia sexual das mulheres, a não possibilitar uma escolha independente e informada.

Assim se dentro de dois ou três anos se viesse a confirmar que o aborto clandestino continuava a ser praticado em números elevados, penso que deveríamos, sem dúvida, reflectir sobre o que falhou na lei e o que falhou na sua aplicação prática. Dez semanas, é, sempre o achei, um prazo ridiculamente pequeno, que foi avançado para defender as possibilidades mediáticas da campanha e evitar imagens demasiado “chocantes”. Dez semanas foi o prazo proposto confiando, claro, e dando na lei espaço de manobra para isso, que a aplicação clínica da lei embebida de nacional porreirismo permitisse estender o prazo para um prazo razoável. Dez semanas a partir do primeiro dia do último período menstrual significa em média a perda de um período menstrual e o atraso de duas semanas no segundo, mas em mulheres de ciclos mais longos pode significar muito menos (não somos todos iguais). Para mulheres que por motivos psicológicos, laborais e sociais vivam a sua sexualidade de forma algo mais desorganizada dez semanas poderá ser insuficiente (não estamos todos na média).

Mas, claro que, como diz Fernanda Câncio “A nova lei tem oito meses de prática, é cedo para tirar conclusões sobre os seus efeitos ou fazer contas, quaisquer que sejam.”

Observemos atentamente, estudemos os números e o que eles significam. É preciso dar tempo para que o SNS se torne num lugar onde se pode recorrer, é preciso dar tempo ao tempo.

Sem comentários: