25.5.07

Sobre psiquiatria, o poder, Sarkozy e desilusão

Gillman pensou sobre os discursos ocidentais construidos acerca da sexualidade, raça e loucura a partir do século XVIII, principalmente através da perspectiva psicanalítica.
No fundo, a base da sua argumentação foi de que a criação da personalidade normal implicaria o distanciamento e materialização (Foucault diria objectificação se engolisse esta merda psicodinâmica) daquela parte do self que é de difícil controlo e ansiogénica - o mau-self. O mau-self que é então projectado e materializado no exterior através do desenvolvimento de estereótipos.
Este self sem controlo está relacionado com as representações da sexualidade e a sua relação com a diferença em geral – mas também com a doença, a cor da pele, a diferença anatómica sexual.

Estes são os mecanismo que estão por detrás desta discussão sobre o sangue e de discursos como este aqui .

Mas infelizmente é com base neste mecanismo que funcionam cada vez mais os senhores do mundo. Todos compreendemos o que Sarkozy quis dizer por racaille, a força racializada e sexualizada desta palavra. A forma como depois de dita se objectifica e distancia o mau-self dos eleitores. A forma securizante com que este discurso foi ouvido - tudo o que esta fora de controlo dentro de mim, está ali materializado naquela palavra, naquela categoria, e este homem promete pôr isto tudo em ordem.

Mas Gillman não foi o único a falar-nos de materialização e a dar-nos pistas para ler Sarkosy e as formas de instituição do poder. Foucault fala-nos dos estados modernos e do poder produtivo (do poder capilar, constitutivo de tudo), em que o controlo passa a também a ser feito através da objectifivação do corpo individual e dos sistemas de funcionamento da sociedade (entre outros mecanismos). Vem isto a propósito desta medida da campanha de Sarkozy (um dos principais objectivos de governação a curto prazo) que li no Le Monde e que passo a citar:
«Les delinquents sexuels devront accepter traitment medical pour sortir de prison a l´issue de sa peine.»
Para quem não compreende francês ou está demasiado perplexo para perceber o que isto quer dizer é simples - diz-nos Sarkozy:
- Os delinquentes sexuais não devem ser vistos pela perspectiva médico –hospitalar, mas sim pelo quadro prisional - tendo uma pena;
- No entanto, depois de cumprirem a sua pena, os delinquentes sexuais, não se tornam cidadãos como os outros com direito à sua liberdade (condicionada como a de todos);
- Não, no fim da sua pena, a sua pena continua até que aceitem ser sujeitos a tratamento «médico».

Não vale a pena perguntarem-me qual é o tratamento médico que se pode oferecer a estes recém criados «doentes» (só são doentes depois de cumprirem pena penal).
Não vale a pena perguntarem-me como é que se tratam estes «doentes» compulsivamente quando eles têm um teste de realidade mantido.
Não vale a pena perguntarem-me que fármacos tratam o desejo, as orientações do desejo, as materializações do desejo.
Todos sabemos que o que Sarkozy quer dizer é exactamente o mesmo que eu ouvi uma vez numa mercearia do meu bairro - Eu cá por mim cortava-lhes o coiso e prontos.

E assim vemos como a ciência e a psiquiatria se submetem aos interesses políticos, criam categorias ao gosto do político da moda, servem os interesses da securitização das consciências.
Assim vemos como sexo, diferença e doença continuam sempre tão ligados, e sempre ao serviço das nossas consciências.

Medo, muito medo e vergonha de pertencer a esta ciência que se põe de joelhos e boca bem aberta para o poder falocêntrico de Sarkoszy.
Eles que lambam os lábios – não contam comigo para estas performances.

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