Gillman pensou sobre os discursos ocidentais construidos acerca da sexualidade, raça e loucura a partir do século XVIII, principalmente através da perspectiva psicanalítica.
No fundo, a base da sua argumentação foi de que a criação da personalidade normal implicaria o distanciamento e materialização (Foucault diria objectificação se engolisse esta merda psicodinâmica) daquela parte do self que é de difícil controlo e ansiogénica - o mau-self. O mau-self que é então projectado e materializado no exterior através do desenvolvimento de estereótipos.
Este self sem controlo está relacionado com as representações da sexualidade e a sua relação com a diferença em geral – mas também com a doença, a cor da pele, a diferença anatómica sexual.
Estes são os mecanismo que estão por detrás desta discussão sobre o sangue e de discursos como este aqui .
Mas infelizmente é com base neste mecanismo que funcionam cada vez mais os senhores do mundo. Todos compreendemos o que Sarkozy quis dizer por racaille, a força racializada e sexualizada desta palavra. A forma como depois de dita se objectifica e distancia o mau-self dos eleitores. A forma securizante com que este discurso foi ouvido - tudo o que esta fora de controlo dentro de mim, está ali materializado naquela palavra, naquela categoria, e este homem promete pôr isto tudo em ordem.
Mas Gillman não foi o único a falar-nos de materialização e a dar-nos pistas para ler Sarkosy e as formas de instituição do poder. Foucault fala-nos dos estados modernos e do poder produtivo (do poder capilar, constitutivo de tudo), em que o controlo passa a também a ser feito através da objectifivação do corpo individual e dos sistemas de funcionamento da sociedade (entre outros mecanismos). Vem isto a propósito desta medida da campanha de Sarkozy (um dos principais objectivos de governação a curto prazo) que li no Le Monde e que passo a citar:
«Les delinquents sexuels devront accepter traitment medical pour sortir de prison a l´issue de sa peine.»
Para quem não compreende francês ou está demasiado perplexo para perceber o que isto quer dizer é simples - diz-nos Sarkozy:
- Os delinquentes sexuais não devem ser vistos pela perspectiva médico –hospitalar, mas sim pelo quadro prisional - tendo uma pena;
- No entanto, depois de cumprirem a sua pena, os delinquentes sexuais, não se tornam cidadãos como os outros com direito à sua liberdade (condicionada como a de todos);
- Não, no fim da sua pena, a sua pena continua até que aceitem ser sujeitos a tratamento «médico».
Não vale a pena perguntarem-me qual é o tratamento médico que se pode oferecer a estes recém criados «doentes» (só são doentes depois de cumprirem pena penal).
Não vale a pena perguntarem-me como é que se tratam estes «doentes» compulsivamente quando eles têm um teste de realidade mantido.
Não vale a pena perguntarem-me que fármacos tratam o desejo, as orientações do desejo, as materializações do desejo.
Todos sabemos que o que Sarkozy quer dizer é exactamente o mesmo que eu ouvi uma vez numa mercearia do meu bairro - Eu cá por mim cortava-lhes o coiso e prontos.
E assim vemos como a ciência e a psiquiatria se submetem aos interesses políticos, criam categorias ao gosto do político da moda, servem os interesses da securitização das consciências.
Assim vemos como sexo, diferença e doença continuam sempre tão ligados, e sempre ao serviço das nossas consciências.
Medo, muito medo e vergonha de pertencer a esta ciência que se põe de joelhos e boca bem aberta para o poder falocêntrico de Sarkoszy.
Eles que lambam os lábios – não contam comigo para estas performances.
Mostrar mensagens com a etiqueta migrações. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta migrações. Mostrar todas as mensagens
25.5.07
Somos todos migrantes II
"Chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extremínio. O tempo
das grandes migrações.
O tempo de ninguém.
c
- Está aí alguém?
É um homem, terão dito. Mas será isto um homem?
Sim. O migrante de si mesmo: aquele que perdendo-se continua.
Aquele que continua a construir o labirinto
das grandes migrações; o antiquíssimo livro do exílio
em que de si e dos seus se vai perdendo. O proletário
de todo o mundo, o judeu alemão, o palestiniano da Galileia
têm séculos inteiros atrás de si. A história enterra-os fundo
nas margens dos rios que de perderem a sua nascença nascem.
O último homem veio dar outra vez a este ossuário queimado
branco. Devorada a vida pelo ominoso sol e pelos insectos
que repetidamente em torno voam
e vão morrendo, pela terra, pelo ar e pelos ossos
onde supunham algum alimento, envenenados.
(...)
Que corpos que sonhos que vozes poderiam
Estes para quem a rosa desde o início doente é a sua vida
em flor: a sua doença mortal. Ou estes
que de si mesmos foram expulsos e emigram e continuam
trocando morte por morte, exílio por exílio.
Agora chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extermínio. O tempo
de ninguém.
(...)
Quem pode ser no mundo tão quieto que não o movem
Nem a fúria a música terrível solidão dos amantes
nem a cólera dos migrantes à porta do desprezo.
- Quem pagará o sem preço da alegria expropriada?
Que resposta tens para aquele que estancada a fonte da voz
contudo fala? Que resposta tens por ti que não lhes roube
aquela que já roubada foi, que não lhes roube as vidas
as casas as ondas o chão o destino que fossem os seus?
Escuta o que vês: no cimo da colina um coro de mulheres
veio e arredou os deuses. Devolveu-os à capital em que o império
esfria. As chamas nas suas cabeças, são as sonhadas crianças
devolvidas à vida do vivo desta terra: essa terra sem amos.
Escuta: Há essa mulher no litoral dos mundos. Ela recebe e
distribui a luz que sobe depois dos dilúvios descendo. Ela
espera a sétima onda, a penúltima sílaba do verso:
Ela canta a canção das crianças que vão morrer ainda.
E contra a perfeição enlouquecida do mar
ela atira pedras que são pássaros certeiros, nuvens voando
à beira do despertar dos rios. Ela faz a origem sem origem.
A origem - agora:
coisa mínima, alguém te chamou -
Há um verso antigo que regressa à invenção
e tudo poderá talvez recomeçar"
Manuel Gusmão, migrações do fogo, Editorial Caminho, pp. 86-90
o tempo da ofensa e do extremínio. O tempo
das grandes migrações.
O tempo de ninguém.
c
- Está aí alguém?
É um homem, terão dito. Mas será isto um homem?
Sim. O migrante de si mesmo: aquele que perdendo-se continua.
Aquele que continua a construir o labirinto
das grandes migrações; o antiquíssimo livro do exílio
em que de si e dos seus se vai perdendo. O proletário
de todo o mundo, o judeu alemão, o palestiniano da Galileia
têm séculos inteiros atrás de si. A história enterra-os fundo
nas margens dos rios que de perderem a sua nascença nascem.
O último homem veio dar outra vez a este ossuário queimado
branco. Devorada a vida pelo ominoso sol e pelos insectos
que repetidamente em torno voam
e vão morrendo, pela terra, pelo ar e pelos ossos
onde supunham algum alimento, envenenados.
(...)
Que corpos que sonhos que vozes poderiam
Estes para quem a rosa desde o início doente é a sua vida
em flor: a sua doença mortal. Ou estes
que de si mesmos foram expulsos e emigram e continuam
trocando morte por morte, exílio por exílio.
Agora chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extermínio. O tempo
de ninguém.
(...)
Quem pode ser no mundo tão quieto que não o movem
Nem a fúria a música terrível solidão dos amantes
nem a cólera dos migrantes à porta do desprezo.
- Quem pagará o sem preço da alegria expropriada?
Que resposta tens para aquele que estancada a fonte da voz
contudo fala? Que resposta tens por ti que não lhes roube
aquela que já roubada foi, que não lhes roube as vidas
as casas as ondas o chão o destino que fossem os seus?
Escuta o que vês: no cimo da colina um coro de mulheres
veio e arredou os deuses. Devolveu-os à capital em que o império
esfria. As chamas nas suas cabeças, são as sonhadas crianças
devolvidas à vida do vivo desta terra: essa terra sem amos.
Escuta: Há essa mulher no litoral dos mundos. Ela recebe e
distribui a luz que sobe depois dos dilúvios descendo. Ela
espera a sétima onda, a penúltima sílaba do verso:
Ela canta a canção das crianças que vão morrer ainda.
E contra a perfeição enlouquecida do mar
ela atira pedras que são pássaros certeiros, nuvens voando
à beira do despertar dos rios. Ela faz a origem sem origem.
A origem - agora:
coisa mínima, alguém te chamou -
Há um verso antigo que regressa à invenção
e tudo poderá talvez recomeçar"
Manuel Gusmão, migrações do fogo, Editorial Caminho, pp. 86-90
24.5.07
Somos todos migrantes
IRENE KHAN: FREEDOM FROM FEAR
ECRI Annual report
simultaneamente outro e eu mesmo - o Outro. só nele me posso reconhecer, só nele posso identificar e construir aquilo que sou e vou querendo ser. mas esse espelho em abismo permite-me também identificar e construir no outro aquilo que não sou, aquilo que não quero ser, aquilo de que tenho medo. e é isto, como o disse Sartre, o inferno - os Outros. e andamos em constantes migrações - dentro daquilo que vamos sendo e lá fora nos desertos sombrios acossados pela memória destas e doutras perseguições. e os Outros vão sendo sempre os mesmos - o estrangeiro, o pobre, a mulher, o homossexual, o migrante - identidades que não nomeiam pessoas, que dizem apenas aquilo que queremos dizer e silenceiam aquilo que não queremos ouvir. a ameaça está já ali e é real, e por isso não os posso deixar comer à minha mesa, e por isso não lhes posso abrir a porta, e por isso não posso deixar de lhes restringir o movimento, e por isso não os posso deixar conspurcar o meu sangue, e por isso não os posso deixar ser iguais àquilo que não sou. e por isso deixo que o meu medo sirva de pasto a outros filhos-da-puta maiores do que eu, mais capazes de prevenir a ameaça, mais habilitados para a identificar, mais eficazes e sempre prontos a fornecerem-me nova dose de medo sem a qual não sei estar aqui.
ECRI Annual report
simultaneamente outro e eu mesmo - o Outro. só nele me posso reconhecer, só nele posso identificar e construir aquilo que sou e vou querendo ser. mas esse espelho em abismo permite-me também identificar e construir no outro aquilo que não sou, aquilo que não quero ser, aquilo de que tenho medo. e é isto, como o disse Sartre, o inferno - os Outros. e andamos em constantes migrações - dentro daquilo que vamos sendo e lá fora nos desertos sombrios acossados pela memória destas e doutras perseguições. e os Outros vão sendo sempre os mesmos - o estrangeiro, o pobre, a mulher, o homossexual, o migrante - identidades que não nomeiam pessoas, que dizem apenas aquilo que queremos dizer e silenceiam aquilo que não queremos ouvir. a ameaça está já ali e é real, e por isso não os posso deixar comer à minha mesa, e por isso não lhes posso abrir a porta, e por isso não posso deixar de lhes restringir o movimento, e por isso não os posso deixar conspurcar o meu sangue, e por isso não os posso deixar ser iguais àquilo que não sou. e por isso deixo que o meu medo sirva de pasto a outros filhos-da-puta maiores do que eu, mais capazes de prevenir a ameaça, mais habilitados para a identificar, mais eficazes e sempre prontos a fornecerem-me nova dose de medo sem a qual não sei estar aqui.
Subscrever:
Mensagens (Atom)