25.5.07

Somos todos migrantes II

"Chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extremínio. O tempo
das grandes migrações.

O tempo de ninguém.


c

- Está aí alguém?

É um homem, terão dito. Mas será isto um homem?
Sim. O migrante de si mesmo: aquele que perdendo-se continua.
Aquele que continua a construir o labirinto

das grandes migrações; o antiquíssimo livro do exílio

em que de si e dos seus se vai perdendo. O proletário
de todo o mundo, o judeu alemão, o palestiniano da Galileia
têm séculos inteiros atrás de si. A história enterra-os fundo

nas margens dos rios que de perderem a sua nascença nascem.

O último homem veio dar outra vez a este ossuário queimado
branco. Devorada a vida pelo ominoso sol e pelos insectos
que repetidamente em torno voam

e vão morrendo, pela terra, pelo ar e pelos ossos

onde supunham algum alimento, envenenados.

(...)

Que corpos que sonhos que vozes poderiam

Estes para quem a rosa desde o início doente é a sua vida
em flor: a sua doença mortal. Ou estes
que de si mesmos foram expulsos e emigram e continuam

trocando morte por morte, exílio por exílio.

Agora chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extermínio. O tempo
de ninguém.

(...)

Quem pode ser no mundo tão quieto que não o movem
Nem a fúria a música terrível solidão dos amantes
nem a cólera dos migrantes à porta do desprezo.

- Quem pagará o sem preço da alegria expropriada?

Que resposta tens para aquele que estancada a fonte da voz
contudo fala? Que resposta tens por ti que não lhes roube
aquela que já roubada foi, que não lhes roube as vidas

as casas as ondas o chão o destino que fossem os seus?

Escuta o que vês: no cimo da colina um coro de mulheres
veio e arredou os deuses. Devolveu-os à capital em que o império
esfria. As chamas nas suas cabeças, são as sonhadas crianças

devolvidas à vida do vivo desta terra: essa terra sem amos.

Escuta: Há essa mulher no litoral dos mundos. Ela recebe e
distribui a luz que sobe depois dos dilúvios descendo. Ela
espera a sétima onda, a penúltima sílaba do verso:

Ela canta a canção das crianças que vão morrer ainda.

E contra a perfeição enlouquecida do mar
ela atira pedras que são pássaros certeiros, nuvens voando
à beira do despertar dos rios. Ela faz a origem sem origem.

A origem - agora:

coisa mínima, alguém te chamou -
Há um verso antigo que regressa à invenção
e tudo poderá talvez recomeçar"

Manuel Gusmão, migrações do fogo, Editorial Caminho, pp. 86-90

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